9.1.13

memória póstuma.

olá, meu amor,

como você se sente?

escrevo para contar-lhe terrível tragédia: acabo de falecer. não, não se choque, não se desespere. o luto é aceito, claro, mas não é necessário espanto. nós já o sabíamos, certo? que estava por morrer do câncer sonhador que me corroía por todos estes anos. não se inquiete, não se desespere. todos os amigos vão esperar, no entanto, que você esteja exasperado... não lhes deixe vir a olhos que passaram-se dois meses desde a minha morte sem que você tenha notado. eu sei, sempre foi assim. nunca houve carta sua que começasse com "olá, meu amor, como você se sente?", porque seus ouvidos são feitos de marimbondos afiados. impedem que o som entre e revidam fortemente se o tom se eleva para tentar penetrar-lhe os pensamentos. você não tem culpa de ser filho de um dragão cuspidor de fogo, mas tampouco tenho eu. e não posso sarar-lhe as cicatrizes das feridas nas orelhas, entende, porque já estou morta.

por aqui ainda espero que tudo vá bem para si. que seja feliz e cresça mais para chegar à própria altura. este é mesmo um conto fantástico que te escrevo do submundo e sabemos que me falta a originalidade do brás. diz-me que sua carne tem vermes. a minha, honestamente, já não sei dizer. talvez precise que se perceba minha morte para que eu possa senti-la plenamente. a ver. quando ler esta carta, tiramos a dúvida: se sentir o verme na carne, estou certa; se não, estou errada. e que há de importante em estar certo e errado no mundo dos mortos? se sou eterna em destino selado, que não conviva meu cadáver com o fato de estar eternamente errado.

um beijo, ou melhor, adeus.



2.1.13

e ponto.

fruta podre com bicho dentro
a gente corta o que é ruim
e acha que já passou,
que partiu, sumiu, datou

mas ficou um pedaço ali no canto
aquele amarelado, indisposto
o pedaço de outro pranto
interrompido e depois reposto

tudo por aqui já passou do ponto
eu sei, esperei até passar
em nós dois não cabe mais desencontro
nem ciúme, nem cartaz,

adeus, você.
eu sempre fui para o lado de lá.