28.4.16

Da falta.

       Não sinto sua falta. Não lembro com saudade do tempo que já passou. Volta e meia a nostalgia vem tomar café da manhã em minha nova casa, mas ela sabe que é visita. Não é sobre as madrugadas que conversamos. Nenhuma parte de mim quer voltar para aquele tempo e nem saber como poderia ter sido. Mas te sinto na minha falta.
       Te sinto na falta de olhos que me vejam como os seus. Na falta diária que seu peito sentia do meu calor. Na adoração de cada flagrante de toda vez que eu te procurava de longe. Sem ensaio, sem pedido, encontrava seus olhos cravados nos meus com um sorriso que espantava qualquer dúvida. Um orgulho que estava ali por nada, por eu ser, estar e existir. Você me observava de perto, de longe, dormindo, escovando os dentes, passando mal depois de alguma orgia etílica, trabalhando, pregando móveis, pintando quadros, tirando fotos, julgando letras, escolhendo filmes, conversando, partindo, voltando, ficando, respirando. E fazia isso sem descanso, como se eu fosse um filme eternamente bom, todo feito de cenas imperdíveis.
       Aprendi a me entender assim, inundada de amor, nessa neblina do exagero. Flutuei alguns anos e talvez isso tenha entorpecido a derradeira partida. Saí de nós inebriada do que você sentia de mim. Agora é desembaçar o espelho. Hoje tento não me afogar na falta do constante transbordamento. No vazio ou rarefeito. Na falta que a falta faz.

(+and love me for my mind
'cause I'm a dangerous heart)

24.4.16

Toda a água.

Toda água que bate na pele muda o que se é por dentro. O suor que escorre no carnaval, a saliva de 31 de dezembro, as lágrimas de janeiro. As ondas batem nas coxas quando não dá mais tempo de voltar à areia. O único caminho é o mergulho. De corpo todo, de cabeça, de olhos fechados,  respiração suspensa. Mergulhei num rio rasinho, com pedra lisa no fundo, e ele me abraçou inteira. Mantive a cabeça embaixo d'água porque quis e ele avisou que era pr'a gente seguir junto. A correnteza deslizava no meu corpo que deslizava na correnteza e não se sabia mais o que era líquido ou carne porque o rio e eu temos alma transparente. Assim fomos de cidade em cidade, cama em cama e uma escada ocasional. Foi quando eu pensei que aquele rio era toda a minha vida. Ainda, a cada braçada tudo parecia mais fundo. Quando não via mais suas pedrinhas coloridas a corrente apertou meus braços e machucou a pele. Nadei com arranhões pequenos no rosto e no peito. Já não conhecia o curso daquele rio. Antes o fluxo suave me levava para um lado e para o outro sem precisar avisar. Não sei mais dizer quando é para a direita ou esquerda. Essa era a altura da queda. Senti desavisada o sal estalar na língua e o fogo de água salgada me tomar por dentro. O rio desembocou no mar. Não tem problema, sou feita de água. O mar também é meu, mas não só. Ele puxa e afasta ao mesmo tempo e eu aviso que fico - enquanto houver fôlego. Fico enquanto sentir gosto de rio. Hoje eu fico e deixo a janela do mar aberta. Todo mar desemboca num rio.